Texto escrito por Larissa Rossi Talarico
Considerado o diferencial do ultimate, espírito de jogo é o nome dado ao primeiro capítulo do conjunto de regras que regem o esporte. Os jogadores normalmente sabem sobre o esporte que praticam, mas no ultimate esse primeiro tópico reforça a necessidade de se saber todas as regras por ser auto-arbitrado.
Um esporte com árbitro é fácil de jogar. Existe uma pessoa dedicada só em aplicar as regras. Os jogadores não precisam se preocupar com isso. No ultimate os jogadores precisam deixar de ser jogadores por um momento para atuar como árbitros e decidir o andamento da partida. Mas isso não é exclusivo do ultimate.
No vôlei há uma regra não dita de os jogadores ajudarem na decisão do árbitro ao dizerem se tocaram ou não na bola durante um bloqueio, principalmente nas categorias em que não há recurso de vídeo. No tênis, nas categorias de base, os jogadores são responsáveis por arbitrar o jogo. No futebol os jogadores podem conversar com o árbitro e ajudar em algo durante a partida, mas é responsabilidade do árbitro decidir o que aconteceu. Esse tipo de comportamento pode acontecer mesmo sem estar nas regras.
A primeira regra do ultimate, no entanto, já envolve a responsabilidade do jogador em saber as regras. Explica que o ultimate é um esporte sem contato e arbitrado pelos jogadores. Também estabelece uma relação de confiança em que nenhum jogador irá quebrar as regras propositalmente. Caso isso aconteça, o jogo deve ser retomado da maneira mais próxima possível do que ocorreria sem a quebra da regra.
A regra estabelece como obrigações do jogador: saber as regras, ser imparcial e objetivo, ser leal, explicar sua opinião de maneira clara e rápida, permitir que o oponente se explique, resolver as conversas o mais rápido possível de modo respeitoso e fazer chamadas coerentes ao longo do jogo todo. Explica que o esporte deve ser competitivo sem perder o respeito pelo oponente. Tudo isso é espírito de jogo. Mas há exemplos de bom espírito, como: informar um colega de time se está fazendo algo desnecessário; e cumprimentar o oponente por uma boa jogada.
Exemplos de mau espírito também estão lá, elencados como comportamentos a serem evitados por todos: jogar perigosamente e ser agressivo, quebrar as regras ou fazer faltas intencionalmente, provocar ou intimidar o adversário, comemorar de forma a desrespeitar o adversário, fazer chamadas em resposta às chamadas do oponente e pedir um passe para o adversário. Esses exemplos de mau espírito podem se aplicar a qualquer esporte.
A diferença é que as regras dos outros esportes não contemplam esses aspectos sobre comportamento. Esse tipo de comportamento é o esperado dentro da sociedade. Crianças são ensinadas a cumprimentar as pessoas nos lugares, a agradecer e a conversar de maneira respeitosa com todos. E ninguém recebe prêmios por isso. Aliás, citando todas as mães do mundo: você não fez mais que a obrigação.
Então, por que o ultimate premia o espírito de jogo?
Se é o comportamento esperado, não deveria ter diferença entre as pessoas que cumprem a regra de forma adequada. E se todos cumprem a regra direito, não há porquê diferenciar, nem premiar.
A premiação leva a um momento que o espírito de jogo é confundido com ter um tipo de comportamento que não está no espírito de jogo. Ela se confunde entre ser legal com o adversário e saber efetivamente as regras. É possível que um jogador saiba todas as regras e não seja amigável. Nem por isso ele merece uma nota ruim.
É por isso que a escala de pontuação vai de zero a 20, e não de zero a 10. Porque 10 é a nota de quem atingiu as expectativas. 10 é para o time que fez tudo certo de acordo com o espírito de jogo. Se algum time foi além do esperado, recebe nota maior que 10. Abaixo de 10 o time não atingiu as expectativas e precisa melhorar algum aspecto.
O 10 com todos os aspectos pontuados em 2 deve ser melhor visto pelo time do que o 10 obtido através de 3 e 1. O 1 indica que não atingiu alguma expectativa e isso pode melhorar. O 3 mostra que alguma expectativa foi superada. Para critérios de premiação é aceitável existir essa escala. Mas para critérios de saber as regras e cumpri-las, o 10 (com tudo 2) deve ter a mesma importância que o 13.
Portanto, se um jogador quiser gritar com o vento porque derrubou um disco, ele pode. Ele não foi desrespeitoso com ninguém. A reação que não envolve desrespeito com o próximo não é ruim. Espírito de jogo é saber respeitar tanto a comemoração de quem marcou o gol quanto a frustração de quem levou. Não é mau espírito ter sangue nas veias.
E, se algo está aborrecendo alguém, deve ser comunicado imediatamente. Muitas vezes esse aborrecimento é mais fruto de uma interpretação errada da parte afetada do que efetivamente uma provocação. Não são robôs jogando. São pessoas que jogam pra se divertir. Nesse aspecto, se cada jogador estiver focado em ganhar o jogo e curtir o processo com seu time, é certeza que o adversário e suas atitudes fora das 4 linhas vão passar despercebidas. E o espírito de jogo não vai ser mais importante que o esporte em si.
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